Primeira
Exortação Apostólica do Papa Francisco
Evangelii
Gaudium
(Oitava
Parte)
Capítulo I
A
TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
4. A missão que se encarna nas limitações humanas
40.
A Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer na sua
interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa dos
exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo
diferente, fazem-no também as outras ciências. Referindo-se às ciências
sociais, por exemplo, João Paulo II disse que a Igreja presta atenção às suas
contribuições «para obter indicações concretas que a ajudem no cumprimento da
sua missão de Magistério». Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à
volta das quais se indaga e reflete com grande liberdade. As diversas linhas de
pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo Espírito
no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a
explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. A quantos sonham com uma
doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma
dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e
desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho.
41.
Ao mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças culturais exigem que prestemos
constante atenção ao tentar exprimir as verdades de sempre numa linguagem que
permita reconhecer a sua permanente novidade; é que, no depósito da
doutrina cristã, «uma coisa é a substância (...) e outra é a formulação que a
reveste». Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo
que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e
compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus
Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o ser
humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou um ideal humano que não
é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não
transmitimos a substância. Este é o risco mais grave. Lembremo-nos de que «a
expressão da verdade pode ser multiforme. E a renovação das formas de expressão
torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no
seu significado imutável».
42.
Isto possui uma grande relevância no anúncio do Evangelho, se levamos verdadeiramente
a sério fazer perceber melhor a sua beleza e fazê-la acolher por todos. Em todo
o caso, não poderemos jamais tornar os ensinamentos da Igreja uma realidade
facilmente compreensível e felizmente apreciada por todos; a fé conserva sempre
um aspecto de cruz, certa obscuridade que não tira firmeza à sua adesão. Há
coisas que se compreendem e apreciam só a partir desta adesão que é irmã do
amor, para além da clareza com que se possam compreender as razões e os
argumentos. Por isso, é preciso recordar-se de que cada ensinamento da
doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que desperte a adesão do
coração com a proximidade, o amor e o testemunho.
43.
No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer
costumes próprios não diretamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito
radicados no curso da história, que hoje já não são interpretados da mesma
maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem
até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do
Evangelho. Não tenhamos medo de os rever! Da mesma forma, há normas ou
preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já
não têm a mesma força educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino
sublinhava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus
«são pouquíssimos». E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos
adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, «para não
tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar a nossa religião numa escravidão,
quando «a misericórdia de Deus quis que fosse livre». Esta advertência,
feita há vários séculos, tem uma atualidade tremenda. Deveria ser um dos
critérios a considerar, quando se pensa numa reforma da Igreja e da sua
pregação que permita realmente chegar a todos.
44.
Aliás, tanto os Pastores como todos os fiéis que acompanham os seus irmãos na
fé ou num caminho de abertura a Deus não podem esquecer aquilo que ensina, com
muita clareza, o Catecismo da Igreja Católica: «A imputabilidade e
responsabilidade de um ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela
ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições
desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais».
Portanto,
sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com
misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que
se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário
não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que
nos incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de
grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida
externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias
dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico
de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos
e das suas quedas.
45. Vemos assim que o compromisso evangelizador se
move por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias. Procura
comunicar cada vez melhor a verdade do Evangelho num contexto determinado, sem
renunciar à verdade, ao bem e à luz que pode dar quando a perfeição não é
possível. Um coração missionário está consciente destas limitações, fazendo-se
«fraco com os fracos (...) e tudo para todos» (1 Cor 9, 22). Nunca se fecha,
nunca se refugia nas próprias seguranças, nunca opta pela rigidez
auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e
no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível,
ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada.
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