Primeira
Exortação Apostólica do Papa Francisco
Evangelii
Gaudium
(Sétima
Parte)
Capítulo I
A
TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
3. A
partir do coração do Evangelho
34.
Se pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso aplica-se também à
maneira de comunicar a mensagem. No mundo atual, com a velocidade das
comunicações e a seleção interessada dos conteúdos feita pelos mass-media, a mensagem que anunciamos
corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos
seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem
parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O
problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então
identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes,
por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto,
convém ser realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores
conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar
o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido,
beleza e fascínio.
35.
Uma pastoral em chave missionária não está obsessionada pela transmissão
desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir.
Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue
realmente a todos sem excepções nem exclusões, o anúncio concentra-se no
essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo
tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder
profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.
36.
Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas
com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais diretamente
o coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza
do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado.
Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que «existe uma ordem ou
“hierarquia” das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o
fundamento da fé cristã é diferente». Isto é válido tanto para os dogmas da fé como
para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.
37.
São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma
hierarquia nas virtudes e ações que delas procedem. Aqui o que conta é, antes
de mais nada, «a fé que atua pelo amor» (Gal 5, 6). As obras de amor ao
próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito:
«O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta
através da fé que opera pelo amor». Por isso afirma que, relativamente ao
agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a
misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se
sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto
é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio
de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua onipotência».
38.
É importante tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar, que
recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais nada, deve-se dizer que, no
anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. Esta
reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e nas acentuações
postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico,
fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade
ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas
precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e
na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais
da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.
39. Tal como existe
uma unidade orgânica entre as virtudes que impede de excluir qualquer uma delas
do ideal cristão, assim também nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar
a integridade da mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se
melhor se a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem
cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria importância e
iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao Evangelho, manifesta-se
com clareza a centralidade de algumas verdades e fica claro que a pregação
moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera
filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida,
antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos
outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite
não há-de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao
serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e
fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de
cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos
propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou
morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de
perder o seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».
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